Por trás da 'mudança de regime' do Brasil

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A “corrupção” governamental – alardeada pela mídia internacional e explorada por ONGs financiadas pelos EUA – é uma arma favorita para desacreditar e remover líderes populistas, como está ocorrendo agora no Brasil, explica Dan Steinbock.

Por Dan Steinbock

Enquanto a mídia internacional se concentra nas manifestações em massa do Brasil contra a corrupção, os esforços por trás da fachada precipitam a mudança de regime, a restauração de uma ordem pré-Lula e uma luta contra as nações do BRICS. Os EUA sentem-se ameaçados por uma era de multipolaridade, que implica profundamente a China e outras economias emergentes.

Em agosto de 2016, o Rio de Janeiro deveria sediar os primeiros Jogos Olímpicos da América do Sul, que deveriam ser o seu grande carnaval de revelação, mesmo em meio a campanhas contra o vírus Zika. Há apenas alguns anos, o Brasil exemplificou o sonho do BRIC de crescimento rápido. Agora está a enfrentar a recessão mais grave do último século. Mas há coisas piores pela frente.

A presidente do Brasil, Dilma Rousseff, discursando na Assembleia Geral das Nações Unidas. (Foto ONU de Marco Castro)

A presidente do Brasil, Dilma Rousseff, discursando na Assembleia Geral das Nações Unidas. (Foto ONU de Marco Castro)

Quando o primeiro presidente da classe trabalhadora do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva, assumiu o poder em 2003, a nação pobre estava à beira de uma implosão económica. O Partido dos Trabalhadores (PT), de centro-esquerda, do presidente Lula e a sua coligação conquistaram os mercados com uma política fiscal conservadora e tiraram milhões da pobreza, enquanto os padrões de vida aumentaram 60 por cento.

O momento foi favorável. Um ano depois de a China aderir à Organização Mundial do Comércio; Lula iniciou as reformas econômicas do Brasil. Para se modernizar, o Brasil precisava de demanda por suas commodities; para se industrializar, a China precisava de commodities. Nos oito anos seguintes, a participação dos EUA nas exportações do Brasil despencou, enquanto a da China disparou. Regionalmente, o Brasil tornou-se o motor de crescimento da América Latina. O Brasil e a China evitaram a política externa unipolar do presidente George W. Bush; cada um apoiava uma visão mais multipolar do mundo.

Assim, os neoconservadores de Washington começaram a fortalecer os laços com a oposição de centro-direita do Brasil. Politicamente, esta oposição compreendia os social-democratas conservadores (PSDB), os democratas e os aliados mais liberais de Lula, autoridades jurídicas e líderes militares. Economicamente, apresentava a elite estreita, que reina sobre uma economia desigual polarizada por classe e raça, bem como conglomerados de mídia conservadores e altamente concentrados, de propriedade de algumas famílias, incluindo o Grupo Globo dos irmãos Marinho.

Os manifestantes representam uma infinidade de grupos, como o movimento Brasil Livre, ativistas neoliberais, Estudantes pela Liberdade, Revolted Online etc. – mas vários cooperaram ou foram financiados pelos irmãos Koch, pela Fundação John Templeton, pelo National Endowment for Democracy e muitos outros.

Durante esses anos, Sérgio Moro, juiz formado em Harvard, e outros líderes brasileiros emergentes participaram do Programa de Liderança de Visitantes Internacionais (IVLP) do Departamento de Estado dos EUA, que abriu portas para agências e instituições dos EUA que lutavam contra o terrorismo e a lavagem de dinheiro.

Criado no meio da Guerra Fria, o IVLP envolveu 200,000 líderes internacionais com os seus homólogos dos EUA, incluindo atuais ou antigos chefes de estado ou chefes de governo. Enquanto isso, a Polícia Federal do Brasil iniciou uma cooperação mais ampla com o FBI e a CIA no combate ao terrorismo. Mas nos anos Lula, o boom económico manteve as forças do Ancien Régime na baía.

Erosão Econômica, Conveniência Política         

Em 2015, a economia do Brasil contraiu 3.7%. A inflação ainda está em 9 por cento, embora a taxa de juros exceda os 14 por cento. Enquanto isso, as principais agências de classificação de crédito rebaixaram a dívida do Brasil para lixo. No Congresso, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha – que representa o parceiro de coligação da presidente Dilma Rousseff, o enorme mas turbulento Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) – procura destituir Rousseff, presumivelmente para dissuadir acusações de que ele recebeu 5 milhões de dólares em subornos do governo. petrolífera estatal Petrobras.

A razão pela qual o gigante petrolífero estatal atrai hoje tanta atenção vai além da corrupção. Na era Lula, a Petrobras foi responsabilizada por todos os blocos offshore de petróleo, enquanto os gigantes petrolíferos dos EUA foram mantidos à distância e a exploração de petróleo foi iniciada com a chinesa Sinopec. Agora que a Petrobras está sangrando, uma venda imediata de privatização traria de volta os atores norte-americanos.

Quando Dilma Rousseff assumiu o cargo, há meia década, ela esperava aproveitar o sucesso de Lula. Na prática, ela recompensou os seus círculos eleitorais com pensões mais elevadas; garantiu incentivos fiscais para indústrias estratégicas e gastou de forma imprudente. Entretanto, o comércio mundial despencou, os preços das matérias-primas entraram em colapso e o crescimento da China desacelerou. Como resultado, o “dinheiro quente” começou a fugir do Brasil, deixando para trás a redução de activos, a deflação e a depreciação.

De acordo com o Wikileaks, a Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA) vinha grampeando os telefones de cerca de 30 líderes do governo brasileiro (Rousseff, ministros, chefe do banco central, etc.) e de gigantes corporativos (incluindo a Petrobras). Os brasileiros acreditam que as agências de inteligência dos EUA têm um histórico sombrio não apenas em inteligência de segurança, mas também em espionagem económica e desestabilização estratégica.

E a história tomou um novo rumo. A investigação Lava Jato (lavagem de carros), que durou dois anos, o maior inquérito de corrupção do Brasil, derrubou décadas de impunidade à medida que se expandia da gigante petrolífera estatal Petrobras para a elite política brasileira. Antes do Natal passado, a polícia invadiu os escritórios do partido no poder, o PT, e do seu principal parceiro de coligação, o PMDB, liderado pelo vice-presidente Michel Terner.

O Brasil tem um longo legado de corrupção que decorre do colonialismo, das elites económicas, da raça e da classe, da ditadura militar (1965-84) e dos seus aliados estrangeiros, incluindo os EUA. . Nesta perspectiva, o momento do inquérito sobre corrupção e das rusgas policiais foi politicamente conveniente. Eles não começaram quando eram legalmente justificados, mas quando Dilma Rousseff se tornou politicamente vulnerável.

Corrupção e Desestabilização            

Internacionalmente, as manifestações em massa do Brasil são retratadas como uma busca contra a corrupção governamental. Isso é uma simplificação grosseira. Na realidade, a actual volatilidade não tem a ver apenas com a corrupção, que é generalizada e se estende a toda a classe política do Brasil, incluindo o PT no poder. Pelo contrário, trata-se de desestabilização que abre caminho a uma mudança de regime.

Quando Lula deixou o cargo em 2010, ele obteve índices de aprovação de 90%. Há algum tempo, ainda se esperava que Lula voltasse às eleições presidenciais de 2018. Depois, ele e a esposa foram obrigados a testemunhar em São Paulo sobre suposta corrupção. A oposição viu isso como mais um motivo para manifestações em massa; Os apoiadores de Lula como um esforço para manchar o nome do líder político mais bem-sucedido do Brasil.

Enquanto Dilma Rousseff convidou Lula para se juntar ao governo como o seu membro mais poderoso, os conservadores argumentaram que o convite era apenas mais uma tentativa de protegê-lo de investigações de corrupção porque no Brasil apenas o Supremo Tribunal pode autorizar tais investigações.

Para neutralizar o retorno de Lula, Moro bloqueou sua nomeação com base em gravações de ligações grampeadas entre Lula e figuras públicas proeminentes, incluindo o presidente em exercício. Dilma Rousseff considerou as ligações gravadas e divulgadas ilegalmente como uma “tentativa política de ultrapassar os limites do Estado democrático”. Nesta narrativa, Moro expressou o seu objectivo final já em 2004, quando defendeu a “subversão autoritária da ordem jurídica para atingir objectivos específicos”, incluindo o uso dos meios de comunicação para intoxicar a atmosfera política.

Neste cenário, o caso de corrupção serviu para desacreditar o governo. Assim, quando Dilma Rousseff convidou Lula para o governo, o objetivo passou a ser neutralizar o retorno de Lula. Durante a sua estada nos EUA, Moro aprendeu que os meios de comunicação dominantes podem ser usados ​​para divulgar histórias que desacreditam os líderes visados ​​nos meios de comunicação dominantes antes do tribunal. No novo normal kafkiano, você não é mais inocente até que sua culpa seja provada; você é culpado até que se prove sua inocência em nome da “segurança nacional”.

Luta contra os BRICS  

A estratégia judicial brasileira lembra a italiana Mani Pulite investigação na década de 1990, que se baseou efectivamente nos meios de comunicação social (dominados pelo magnata Silvio Berlusconi) para deslegitimar o sistema político, que foi substituído por uma liderança autoritária (novamente, Berlusconi). Em vez de um golpe de Estado violento ou de uma ditadura militar, a estratégia judicial pode conseguir a mudança de regime por meios legalmente aceitáveis. No Brasil, o impeachment de Dilma Rousseff está avançando e muito mais se seguirá.

Na visão de Washington (e da oposição brasileira), Lula, Dilma Rousseff e o PT permanecem controversos devido à sua ênfase na multipolaridade (que exclui o excepcionalismo americano); apoio aos BRICS (que parece operar contra os interesses dos EUA e do G-7); financiamento para o Novo Grupo de Desenvolvimento do BRICS e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (que são vistos como minando o poder das organizações multilaterais internacionais do G-7); esforços para superar a polarização de rendimentos (que é considerada potencialmente subversiva), a integração latino-americana (que é considerada anti-NAFTA) e um regime global alternativo de Internet (que contornaria o controlo dos EUA); e um cabaz de moedas multipolares (que é visto como uma tentativa de castrar o domínio global do dólar americano).

Nesta narrativa, a desestabilização do Brasil é estratégica e tem menos a ver com a ascensão da democracia do que com um esforço para substituí-la por um novo autoritarismo. Por sua vez, as campanhas anticorrupção centram-se em partidos políticos inconvenientes, mas excluem as elites económicas e os interesses estrangeiros que sustentam a corrupção. Porém, o que acontece no Brasil não ficará apenas no Brasil. Pelo contrário, tem potencial para radicalizar a oposição de centro-esquerda no Brasil e endurecer os sentimentos noutros países do BRICS.

À medida que as perspectivas de crescimento global continuam a diminuir, o que as economias avançadas e emergentes precisam é de uma cooperação que beneficie ambas – e não da restauração de regimes antigos que insistem em privilégios que nunca foram legítimos ou democráticos.

Dan Steinbock é o fundador do Difference Group e atuou como diretor de pesquisa de negócios internacionais no India China and America Institute (EUA) e pesquisador visitante nos Institutos de Estudos Internacionais de Xangai (China) e no Centro da UE (Cingapura). Para mais, veja http://www.differencegroup.net [Este comentário foi publicado originalmente pela China-US Focus.]

9 comentários para “Por trás da 'mudança de regime' do Brasil"

  1. Fernando Rogovine
    Abril 8, 2016 em 17: 02

    na minha opinião, este artigo simplifica excessivamente a situação, baseando a sua narrativa em interesses externos contra um guião governamental nacional e independente, apagando ou esquecendo a pesada contribuição do próprio governo para a perda de sustentabilidade política…
    o Partido dos Trabalhadores está desmoronando sozinho, devido a políticas erradas, apostas erradas, erros próprios, excesso de confiança irresponsável, causando a perda de sua legitimidade política: a oposição está muito mais apenas preenchendo o espaço vazio…

    todas as atuais forças de oposição (internas e externas) estiveram plenamente presentes durante os últimos 12 anos, mas depois, o Partido dos Trabalhadores mantém-se firme devido à sua força política; agora, a novidade é que o governo está desmoronando, econômica, política, ideologicamente...

    o brasil está agora no meio da maior depressão de toda a sua história, com uma economia estagnada em 2011/12/13 e recessão em 2014/15/16 devido a maus investimentos, estímulo excessivo ao consumo, uma década de investimentos em declínio , otimismo irresponsável, expansão da folha de pagamento federal e dos favores da segurança social, abandono da agenda de reformas na segurança social (que agora assume os seus custos), défice fiscal pela primeira vez desde a década de 1990, dívidas crescentes…

    o mesmo aconteceu com a Petrobras: investimento excessivo, má gestão interna, corrupção generalizada com empreiteiros e forte controle populista de preços de venda no mercado interno, causando a perda de sustentabilidade da dívida; em suma, um gigante corporativo sólido, habituado a objectivos políticos mesquinhos que levam a uma situação de quase falência…

    nada disso se deveu a interesses externos ou geopolíticos contra o Brasil, foi apenas má gestão local, má gestão com motivação política…

    no mês passado, ocorreu uma enorme manifestação popular contra o governo: foi simplesmente a maior manifestação política de toda a história brasileira, e não foi focada apenas na agenda da corrupção, mas em uma crítica geral contra as políticas deste governo, derretendo todos os setores e classes da sociedade brasileira…

    a corrupção e o juiz Moro são apenas a ponta do iceberg: a população está cansada deste governo já em 2014 e a estreita margem de vitória nas eleições (1%) foi baseada em informações enganosas e enganosas sobre a real situação do economia e o orçamento do governo, além do financiamento maciço de campanhas de corrupção…

    três meses após a posse, o que eclodiu foi simplesmente uma revolta selvagem….

    • Fernando Rogovine
      Abril 8, 2016 em 17: 08

      explicar a crise com base no trabalho do juiz Moro equivale a explicar a eclosão da Primeira Guerra Mundial pelo assassinato do arquiduque austríaco…

  2. J'hon Doe II
    Abril 4, 2016 em 13: 03

    Corrupção e Desestabilização

    Internacionalmente, as manifestações em massa do Brasil são retratadas como uma busca contra a corrupção governamental. Isso é uma simplificação grosseira. Na realidade, a actual volatilidade não tem a ver apenas com a corrupção, que é generalizada e se estende a toda a classe política do Brasil, incluindo o PT no poder. Pelo contrário, trata-se de desestabilização que abre caminho a uma mudança de regime.

    Luta contra os BRICS

    A estratégia judicial brasileira lembra a investigação italiana Mani Pulite na década de 1990, que contou efetivamente com a mídia (dominada pelo magnata Silvio Berlusconi) para deslegitimar o sistema político, que foi substituído por uma liderança autoritária (novamente, Berlusconi). Em vez de um golpe de Estado violento ou de uma ditadura militar, a estratégia judicial pode conseguir a mudança de regime por meios legalmente aceitáveis. No Brasil, o impeachment de Dilma Rousseff está avançando e muito mais se seguirá.

    ::
    Christine Lagarde, do FMI: “Quando o mundo desce, nós prosperamos”

    http://www.globalresearch.ca/imfs-christine-lagarde-when-the-world-goes-downhill-we-thrive/5518214

  3. porta2
    Abril 3, 2016 em 21: 56

    A chave aqui é a anarquia. O governo é a ferramenta número um do opressor. Não é necessário ou obrigatório. Através de governos de guerrilha violentos e determinados e das suas infra-estruturas, o pessoal pode ser exterminado e nunca mais ser autorizado a regressar.

  4. Oleg
    Abril 3, 2016 em 20: 08

    Essas pessoas realmente fazem tudo de acordo com o mesmo livro. Nenhuma imaginação. O Guardian acaba de publicar algumas informações do Panamá sobre Putin ligadas a uma conta offshore de 2 mil milhões de dólares. Bem, espere um minuto. Não o próprio Putin. Seu nome não aparece em lugar nenhum, como o Guardião reconhece a contragosto desde o início. Em vez disso, algum cara que ele aparentemente conhece e que PODE ter algo a ver com isso. Mais uma vez, adoro os britânicos por suas escolhas de palavras. Como se costuma dizer, “seus amigos ganharam milhões em negócios que aparentemente não poderiam ter sido garantidos sem o seu patrocínio”. Aparentemente. Ah. Eu gosto disso. É quase equivalente à frase do ex-juiz Owen: “Putin PROVAVELMENTE aprovou o assassinato de Litvinenko…”

    É claro que tudo isso é um ataque coordenado. Mas estou realmente surpreso. Essas pessoas parecem estar muito desesperadas. Eu me pergunto se isso está relacionado com as chances de a Sra. Clinton ser eleita presidente desaparecerem. Eles estão com muita pressa, parece. Ha-ha.

    • Joe Tedesky
      Abril 4, 2016 em 01: 24

      Ah, não se preocupe, este vazamento do paraíso fiscal pode ser apenas o ataque dos Rothschild à sua concorrência, e vingar-se de Putin, que expulsou da Rússia os oligarcas Rothschild há alguns anos atrás.

      • Oleg
        Abril 4, 2016 em 09: 31

        Bem, aparentemente eles afundaram Poroshenko. Parece que essas pessoas realmente não conseguem encontrar a sorte, mesmo com as duas mãos.

  5. mick
    Abril 3, 2016 em 13: 55

    excelente artigo. As bandeiras vermelhas estão por toda parte neste golpe no Brasil, e a análise do BRICS é precisa e raramente mencionada em qualquer outro lugar. Curiosamente, há duas semanas John Oliver fez algo sobre o Brasil que estava em sintonia com os neoconservadores. aqui está uma análise muito boa sobre Oliver e sua propaganda e a situação do Brasil.

    http://mpmacting.com/blog/2016/3/30/ynuq9kkoj5fb81hobs9tlk1h48fpjn

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